
Legenda:
À esquerda, um leproso dos tempos bíblicos retratado com feridas visíveis na pele, vestindo roupas simples e expressando sofrimento e isolamento social. Ao centro, a imagem ampliada do Mycobacterium leprae (bacilo de Hansen), bactéria causadora da hanseníase, representada em tons rosa e roxo sobre fundo verde. À direita, um paciente moderno com hanseníase, mostrando manchas e lesões típicas da doença, trajando uma camisa comum — evidência de que, hoje, a hanseníase é tratável e não requer exclusão social. A composição evidencia as diferenças históricas, sociais e científicas entre a “lepra” bíblica e a hanseníase atual.
Quando ouvimos a palavra lepra, é comum que muitas imagens surjam em nossa mente: histórias antigas, personagens bíblicos sendo excluídos da sociedade, imagens fortes de pessoas com a pele desfigurada. Mas será que a “lepra” mencionada na Bíblia é a mesma doença que conhecemos hoje como hanseníase?
Essa confusão é comum, mas a verdade é que o termo “lepra” tem uma história longa e cheia de transformações. Neste artigo, vamos explorar as origens do conceito de lepra nos tempos bíblicos e explicar como ela se diferencia da hanseníase, uma doença real e bem conhecida da medicina moderna.
Lepra nos Tempos Bíblicos: Um Conceito Religioso e Social
A palavra original: Tsara’ath
No Antigo Testamento da Bíblia, a “lepra” aparece muitas vezes, especialmente nos livros de Levítico, Números e Deuteronômio. A palavra hebraica usada nesses textos é tsara’ath, que não se referia, necessariamente, a uma doença específica como entendemos hoje.
Na verdade, tsara’ath era uma designação ampla para qualquer tipo de anormalidade visível na pele — como manchas brancas, descamações ou alterações na coloração. Esses sinais eram vistos com grande desconfiança e temor, porque poderiam representar impureza ritual, algo muito sério na tradição religiosa da época.
Além de afetar pessoas, a tsara’ath também podia atingir roupas e até paredes de casas. Isso mostra que o conceito estava ligado mais à ideia de “mancha” ou “contaminação” do que a uma enfermidade médica específica.
Isolamento social e rituais de purificação
Uma das consequências mais dramáticas de ser diagnosticado com tsara’ath era o isolamento social. A pessoa era considerada “impura” e precisava viver afastada da comunidade até que fosse considerada “limpa” novamente por um sacerdote.
Não havia tratamento médico, mas sim um conjunto de regras e rituais de purificação. Se os sinais desaparecessem, a pessoa poderia passar por um ritual simbólico e voltar ao convívio social.
Era uma questão de ordem religiosa e social, não médica.
Da Bíblia ao Grego e ao Latim: A Confusão Começa
A tradução que mudou tudo
Quando os textos hebraicos foram traduzidos para o grego na chamada Septuaginta (tradução usada por judeus fora de Israel antes do nascimento de Jesus), a palavra tsara’ath foi traduzida por lepra, que em grego significa algo como “escamoso” ou “áspero”. Ou seja, o foco ainda era na aparência da pele, e não em uma doença infecciosa específica.
Depois, essa tradução foi passada para o latim na Vulgata, feita por São Jerônimo, que manteve o termo lepra. A partir daí, a palavra entrou nas versões da Bíblia que usamos hoje.
Foi assim que o termo “lepra” passou a ser associado àquelas manchas e lesões descritas na Bíblia — mesmo que, na realidade, estivessem falando de condições bem diferentes da hanseníase moderna.
E no Novo Testamento?
Jesus e os “leprosos”
No Novo Testamento, Jesus é mostrado curando várias pessoas com lepra. Mas, de novo, o termo usado está carregado dessa herança de traduções, e pode ter sido usado para se referir a qualquer pessoa com uma doença de pele visível e marginalizada.
É possível, como apontam alguns estudiosos, que algumas dessas pessoas realmente tivessem hanseníase, já que essa doença já existia na Grécia, Itália e norte da África na época. No entanto, não há evidências arqueológicas de casos confirmados em Israel no tempo de Jesus.
A ênfase dos evangelhos não é tanto na doença em si, mas no fato de que Jesus se aproximava dos excluídos e os restaurava à dignidade social e espiritual. Em vez de fugir dos “impuros”, ele os tocava e os curava — algo revolucionário para a época.
Hanseníase Hoje: A Doença Real
Causada por um bacilo específico
A hanseníase, como a conhecemos hoje, é uma doença infecciosa causada pelo Mycobacterium leprae, também conhecido como bacilo de Hansen. O nome “hanseníase” foi adotado justamente para evitar o estigma associado à palavra “lepra”.
Essa bactéria afeta principalmente a pele e os nervos periféricos. Os sintomas mais comuns incluem manchas esbranquiçadas ou avermelhadas na pele com perda de sensibilidade no local. Com o tempo, se não tratada, a doença pode levar a deformações e incapacidades físicas, especialmente nos olhos, nariz, mãos e pés.
Como se transmite?
A transmissão da hanseníase ocorre principalmente pelas vias aéreas superiores — ou seja, através do ar, por meio de gotículas de saliva expelidas ao falar, tossir ou espirrar. Há também a possibilidade de transmissão pela pele, através do contato com lesões infectadas.
No entanto, vale ressaltar que a hanseníase não é altamente contagiosa. A maioria das pessoas tem resistência natural à bactéria e nunca desenvolve a doença, mesmo quando expostas.
Tratamento e cura
A hanseníase tem cura e o tratamento é totalmente gratuito no Brasil, fornecido pelo SUS. Ele é feito com antibióticos específicos que devem ser tomados por alguns meses, dependendo do tipo da doença.
Quanto mais cedo o diagnóstico, menores as chances de sequelas. Por isso, é essencial que as pessoas procurem ajuda médica ao perceberem manchas na pele com perda de sensibilidade.
Stigma: Uma Herança do Passado
A principal semelhança entre a lepra bíblica e a hanseníase atual não está na biologia, mas na forma como as pessoas afetadas são tratadas. Assim como no passado, muitas vezes quem tem hanseníase ainda sofre discriminação, exclusão e preconceito.
Isso acontece por causa do estigma histórico e religioso associado à “lepra”, que foi vista por séculos como sinal de impureza ou castigo divino. Muitas pessoas escondem os sintomas por medo de rejeição, o que atrasa o diagnóstico e tratamento.
Por isso, entender a diferença entre a lepra bíblica e a hanseníase é um passo importante para combater esse preconceito.
O Chamado de Jesus: Um Olhar Atual
Nos evangelhos, Jesus diz aos seus discípulos: “Curai os leprosos”. Mas muitos estudiosos modernos interpretam essa ordem de forma mais ampla. Segundo o médico e teólogo W. H. Jopling, esse chamado pode ser entendido como: “Busquem os excluídos, os marginalizados, todos os que sofrem por causa das atitudes da sociedade. Ajudem-nos de todas as formas”.
Essa leitura nos convida a olhar para além da doença física. Nos leva a refletir sobre como tratamos as pessoas que fogem do padrão, que vivem à margem, que enfrentam o preconceito.
Conclusão: Por que isso importa hoje?
A confusão entre a lepra bíblica e a hanseníase não é apenas um erro histórico. Ela tem consequências reais, que ainda afetam a vida de milhares de pessoas ao redor do mundo.
Enquanto tsara’ath era um conceito religioso e simbólico usado para marcar alguém como impuro, a hanseníase é uma doença infecciosa tratável, que não deveria causar exclusão social.
Entender essa diferença é um ato de justiça e compaixão. É reconhecer que o conhecimento evoluiu, e que nossa forma de tratar o outro também precisa evoluir.
Informação é poder — e também é um antídoto contra o preconceito.
Se você conhece alguém que tem hanseníase, saiba que essa pessoa precisa de acolhimento e apoio — não de afastamento. E se você tiver dúvidas sobre manchas na pele, procure uma unidade de saúde. O diagnóstico precoce faz toda a diferença!